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Contos

O vazio

Olhando para o nada, enxergava muito. Enxergava muito mais que os próprios olhos, pois, naquela distração, em que se olha mas não se vê, mirando os olhos no nada, enxergava mais que todos, enxergava todo o vazio que a sua alma guardava. E este vazio o destruía ao mesmo tempo em que o alimentava, já que a sua espera, a sua agonia, o seu querer, ao mesmo tempo em que eram motor, eram também atoleiro, a areia movediça que o engolia para que nunca alcançasse a liberdade de apenas ser. Decidiu então recolher-se à solidão infinita da própria desgraça, abriu a porta e adentrou o vazio escuro de um quarto tão claro quanto o sol e, após fazê-lo menos que lua, findou-se até o dia que viria. Dormiu esperando, quem sabe, um novo sol.

No outro dia, quando o sol nasceu, parecia carregar o peso do mundo inteiro: suas pernas doíam, seus olhos, escuros e pesados, viam aquela luz intensa entrar pelas frestas da porta, seus braços pareciam mais fracos e finos que o normal e, apesar de tudo, sentia-se, por incrível que pareça, de alguma forma feliz. Aliás, de alguma forma não. Estava clara, a forma. Tão clara quanto a luz das frestas: perceber que acordara significava que ainda vivia, o que não era, ao menos em pleno amanhecer claro de verão, notícia ruim. Enrolava na cama mais alguns minutos. Lembrava-se bem do que planejara em sua mente entre o deitar e o amanhecer. Iria, custasse o que custasse, fazer tudo o que precisava.

— Hoje eu consigo! Hoje eu consigo! Hoje eu consigo!, gritava mentalmente, com os olhos agora cerrados, fazendo parecer quase um sussurro que escapulia de sua língua para ganhar forma em seus lábios, tão forte que eram seus pensamentos.

Levantou de supetão.

O cheiro da manhã era, para ele, como é o oxigênio para os pacientes mais decadentes de uma UTI, ou seja, apesar de não ser total garantia de nada, ao menos mantinha alguma estabilidade, ou, para os mais animados, mantinha uma certa felicidade em perspectiva, como um quase objetivo futuro, uma miragem que pudesse se tornar real ou algo que era impossível agora a um possível alcance. Havia algo pelo que lutar, algum motivo, alguma desculpa para enganar seus pensamentos mais frios e sombrios.

Após abrir a porta do quarto e andar um pouco, encontrou uma mesa farta. Sentou-se. Por conta da pressa que a fome causa ignorou o ambiente, mas não tardou em notar que ninguém mais além dele estava ali e, antes da quase primeira mordida numa torrada, sentiu-se tão estranho quanto pôde. Como uma casa daquela, sempre cheia, poderia ter uma cozinha tão vazia? Pior ainda: como, numa casa acostumada à muvuca familiar do dia a dia, uma mesa tão cheia de delícias poderia ter cadeiras demais e pessoas de menos? A curiosidade foi mais forte que a fome. Andou pela casa e, de novo, nada. Ninguém estava ali, apenas ele. Pensou que tivessem ido à missa— era domingo — e, como seu sono tinha sido tão profundo, supôs que tinham-no chamado mais cedo e ele não acordara. Vencida a curiosidade medonha pelas suposições convincentes, foi comer.

Quando voltou à mesa, nada mais havia ali. Quer dizer: nada de comida, a mesa estava limpa, mas o resto da conjuntura da cozinha estava normal. Olhou ao redor desconfiado, parecia estar sozinho, mas tinha a estranha sensação de ser vigiado. Algo estava olhando, rondando, era o que sentia. Desesperou-se e correu até a porta de saída. Tentou abri-la e, mesmo rodando a chave com toda a força que tinha, ela não abriu. Gritou, bateu à porta como louco, mas ninguém lá fora ouvia. Na verdade, parecia não ter ninguém passando, e o que era mais estranho: embora dentro da casa estivesse claro como o dia, ao curiar pela fresta da porta da rua via apenas escuridão; era noite. Teve agora medo de sair e, desesperado, correu para os fundos, de volta à cozinha. Mas, chegando lá, outra surpresa: a mesa não estava mais vazia! Mas tampouco estava abarrotada de comida como antes. Haviam pedaços de carne na mesa. Carne crua. Carne sua. Isso mesmo, via seus pés, braços, mãos e demais membros inconfundivelmente decepados. Fora esquartejado. Via um rastro de sangue, como algo que foi arrastado de qualquer jeito, vindo do seu quarto. Teve uma estranha sensação. Uma dúvida latente, pois, se aquelas eram partes de seu corpo, então ele agora — o que se via esquartejado, não o que era visto todo repartido — era um…

— Meu Deus…

Começou a chorar. Relutava, mas precisava fazer o teste. Tinha o rosto enrugado de choro numa expressão de assombro quando, lentamente e tremendo, tocou-se e, para sua surpresa, não era um espírito. Era sólido. Sólido como a porta trancada que o impedira de fugir minutos antes. Mas como? Como podia estar sólido, ter um corpo, e, ao mesmo tempo, se ver estraçalhado sobre aquela mesa? Pois sim, reconhecia-se ali. Era o seu pé, era a sua mão. Reconhecia também aquela tatuagem. O antebraço, o pedaço brutalmente arrancado, tinha a mesma tatuagem de raio que tinha no antebraço inteiro que estava colado nele naquele mesmo instante.

Mas ele ainda não tinha visto o pior: em cima da geladeira, quando se virou, viu sua face, seu rosto. Sua cabeça encontrava-se ali. Os lábios estavam cortados de modo que a boca permanecia sempre aberta, mas não haviam dentes ou língua. Sua boca era apenas um buraco todo escuro de onde desciam vermes e sangue. Seus olhos estavam em mesmo estado, mas expeliam sangue com miolos. O cabelo estava todo bagunçado e a pele parda. Não branca, como era, mas parda. Haviam cortes, pequenos e quase imperceptíveis, em toda a superfície da pele do seu rosto e suas orelhas foram arrancadas, assim como seu nariz. Ambos tinham sangue com fezes escorrendo. Enlouqueceu de vez.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHH, gritou como louco.

Olhou para os lados desesperadamente procurando uma saída. Precisava fugir dali. Nada estava certo. Esquecendo aquelas partes de seu corpo por um momento, nesse movimento, percebeu que a casa estava, agora, absolutamente imersa em escuridão. Sim, deu conta disso apenas agora que deixara de lado as imagens grotescas. Notou apenas um lugar, ou melhor, uma porta de onde vinha luz: a porta que dava para o quintal, este que ficava do lado contrário à porta de saída da frente, era, agora, o único lugar de onde vinha alguma luz. Foi num piscar de olhos, mas sua corrida até a luz pareceu uma corrida pela vida onde os segundos entre a viver e morrer parecem minutos seculares. Foi como ter que, desesperadamente, passar as duas pernas para dentro de um barco quando se tem um tubarão a metros de seu alcance. Mas, mesmo ocorrendo-lhe esses novos pensamentos de ter pedaços arrancados, conseguiu.

Chegando a essa porta de saída dos fundos da casa para fora viu-a totalmente arreganhada. Parou. Sentiu alguma esperança e, de algum modo, felicidade. Escaparia. Olhou para trás e viu vultos se mexendo. Sem mais pensar, disparou, então, em direção à saída. Saiu. Era um lugar calmo, mas misterioso. Não era seu quintal, onde brincava com seu irmãozinho menor, era um quintal diferente. Tinha uma linda grama, pés de mamão e outras plantas, pequenas e grandes, que circulavam rente aos muros. Morria de medo e aflição, olhava desesperadamente para todos os lados, mas nada, de bom ou ruim, acontecia. Passado um tempo, tempo de certo tédio, decidiu deitar-se no chão mesmo. Estava espetacularmente cansado. Contemplou o céu lindo. Via uma pipa e pássaros para lá e para cá. Haviam muitas nuvens. Nuvens branquinhas e sedosas. Podia sentir calma pela primeira vez desde o seu despertar.

Adormeceu.

Quando acordou tudo estava como antes. Talvez tivesse adormecido por minutos ou horas. Agradeceu a Deus por ainda estar vivo, pois que loucura era ter adormecido sob aquelas condições! Que loucura! Mas seu corpo cansado precisava daquele descanso. Não aguentou e dormira. Sentia-se bem agora. Foi bom ter dormido. Que felicidade! Olhou para a casa e viu sua mãe chamando:

— A comida está na mesa, filho!, gritou ela, gentilmente, da porta dos fundos.

Tinha sonhado! Que loucura. A pouco nada fazia sentido. Levantou perguntando-se como havia parado ali antes de dormir e, enquanto caminhava, ouviu um assobio. Assustado, olhou rápido na direção da fonte do ruído indesejado, mas era apenas o vizinho cantarolando da sacada enquanto cortava o churrasco. Sentiu nojo. Lembrou da sua carne. Ia dizer à mãe que não estava com fome.

Não sabia dizer o quê, mas algo tinha lhe tirado a atenção para uma coisa impossível de não se perceber logo de cara: deu uma melhor olhada ao redor e viu que não era o mesmo quintal do seu sonho, mas o quintal de sua casa, da vida real. Sentiu um alívio ainda maior. Continuou e, enquanto andava, olhou para cima e a pipa continuava lá. As nuvens estavam exatamente iguais. Eram as únicas coisas que continuavam iguais ao sonho. Tinha uma obscura sensção tempo congelado. Olhou para sua roupa e era a mesma, suja como no pesadelo. Mais uma coisa igual ao sonho. Desconfiou. Olhou para dentro de casa, viu sua mãe andando pela cozinha enquanto a panela chiava. Tornou confiar. A casa estava toda acesa e clara. Melhores indícios. Olhou para cima de novo, a pipa. Olhou para casa, a luz. Olhou ao redor, seu quintal. Ouviu, assobio. Tornou olhar para cima...

BUMMMMMMMM!!

Um raio. De repente o quintal encontrava-se em escuridão diluviana. Começou a chover do nada. Não via muito mais ao redor que a porta da casa toda acessa, notando um mais de apenas o curto horizonte de alguns metros do seu entorno. Teve medo novamente, mas pensou que era apenas coisa do tempo louco, como sempre fora naquela cidade. Era daquelas com dias que choviam horrores de manhã e faziam sol escaldante de tarde. Ali o tempo nunca respeitou-se, era chefe de dois mandos. Mas, como um raio absolutamente inesperado, subitamente sua visão não via mais as cores. Era tudo preto e branco, como se fosse daltônico. Olhou para cima, chovia. Olhou para casa, sua mãe. Olhou para os lados, no chão, pés, mãos, pernas, capa preta, corrida…! Uma figura louca e aterrorizante vinha em sua direção com a maior faca de cozinha que já vira na vida. Enlouqueceu. Correu para casa.

— Corre mãe, tem um louco aqui que vai nos mataaaar!, berrou.

Entrou em casa e, como num passe de mágica, estava no mesmo cenário de antes de sair para o quintal: partes de seu corpo, mesa, sangue, crânio, geladeira, escuridão. Mas havia algo mais: sua mãe estava morta, toda esfaqueada. O corpo dela estava encolhido num canto, ao lado do fogão. Desesperou-se. Correu. Tinha medo. Mas, nos outros cômodos, apenas encontrou seu pai, seu irmãozinho e sua irmã mais velha na mesma situação. Foram assassinados, cada um num cômodo. Sentiu raiva e ódio. Decidiu que ia enfrentar a coisa. Deu meia volta e, quando chegou num cômodo central, daqueles com portas que dão para todos os outros, de cada porta saiu uma coisa daquela que o perseguia. Eram seis coisas encapuzadas, cada uma com uma faca enorme na mão. Iriam matá-lo. Tremeu, mas não temeu. Não mais.

— Irei enfrentá-los, seus malditos!, falou enquanto aquelas coisas riam tenebrosamente em meio à escuridão.

Impossível. Aquelas coisas o dominaram: jogaram-no ao chão e, antes que ele tivesse tempo de se levantar, com pulos que pareceram voos em sua direção, cada coisa segurou um pedaço dele, prendendo-o ao chão. As coisas, todas ao mesmo tempo, começaram a distribuir facadas por todo o corpo dele. E aquilo sucedeu-se no que parecerem horas de tortura… Ele esperneava e se debatia, mas estava preso, seguro ao chão, pelas coisas que estavam em cima dele. Aquelas capas pretas esvoaçavam para todo o lado com o movimento das facadas ininterruptas, o que aumentava mais sua agonia. Decidiu fechar os olhos, pois seu tato, com cada facada perfurando todos os centímetros de seu corpo, já era tortura suficiente. Não precisava de sua visão para agoniá-lo ainda mais.

Ele não via, mas sabia que tinha sangue, dele, por toda parte… E quando pareceu que não acabaria mais… Toc, toc, toc… Irritou-se. Pensou que agora não adiantaria mais socorro, era tarde demais, estava morto. Ninguém sobrevive a tantas facadas. Continuou a debater-se. Facadas. Sentia seu corpo todo esfaqueado. Facadas. Facadas. Sentia a lâmina. Facadas. Estava sob domínio daquelas coisas. Facadas. Facadas. Facadas.

Até que algo de estranho ocorreu a ele: as facadas não paravam, mas tinha agora uma vontade louca de rir enquanto debatia-se. Tinha medo de abrir os olhos novamente, mas, sentindo que precisava, tomou coragem de enfrentá-los, olhar nos olhos vermelhos daqueles desgraçados de novo. Abriu os olhos morrendo de ódio e, para a sua surpresa, sua irmãzinha, que subira em sua cama, fazia-lhe cócegas sem parar enquanto ele se debatia como louco, rindo sem parar.

— Acorda seu preguiçoso!, ria sua irmãzinha ao dizer.

— Acorda filho, temos 40 minutos para estar na missa, é domingo… Venha comer e banhar. Falou sua mãe batendo na porta, já aberta, para despertá-lo.

Levantou-se e pegou a menininha no colo. Sentia-se ótimo! Não estava triste, nem vazio, nem cansado, nem com os olhos pesados, nem nada disso. Estava ótimo. O dia era lindo, saiu do quarto com a menininha ainda no colo. A mesa estava linda e farta. Sua família estava toda sentada à mesa. Teve, então, o melhor café da manhã de toda sua vida.

Fim.


A camisa

Ordinariamente, e caminhando de volta para casa, a conversa de dois amigos sobre qualquer coisa juvenil se desenrola de fundo. O sol já começa a se pôr nesse fim de tarde. No ar, um rumor de normalidade alegre distingue o momento em meio ao declínio do brilho solar. Como esse, o momento em comum disfarça os mundos diferentes, esconde das partes qualquer vivência fora da que lhes é conjunta. Mas, por vezes e sem querer, suspeitas aparecem, pois a vida e a realidade urgem. Pulsam, independentes do que, com ou sem propósito, bombeia-se.

— Amanhã deveríamos voltar lá... - diz um dos garotos.

—...e acabar com eles! - diz o outro.

O clima tranquilo do momento, consonante com o vai e vem das pessoas, combina também com a animação, o brilho, desses jovens. Tão cheios de vida, numa alegria destemida, segura de si! No asfalto - a calçada, em toda, é mato de meia canela, areia e pedras - sua caminhada é como decidida ao que vier, como os piratas de uma história oceânica ou os portugueses descobrindo novas terras.

Seguindo este momento como dois pássaros que voam livres, veem como A Esfinge vindo em contramão: colega de escola de um dos garotos, comum portanto apenas dele, cujo, em mente, lembranças de escola começam a correr como folhas que caem em preparação arbórea para o frio que vem.

— Me empresta sua camisa... - diz A Esfinge, vindo em sua direção ao percebê-lo ali.

Seu rosto envolto numa passividade dura fala com olhos de certeza penetrante:

— Depois eu te devolvo...

Engolido por confusão interior, o garoto tira a camisa e dá ao conhecido, que sai já vestindo-a e sem dizer uma só palavra a mais, como sem que algo tivesse mesmo acontecido.

Tentando se convencer da normalidade daquilo, e para não se sentir tão envergonhado, o garoto repete palavras confusas e constrangidas:

— Eu conheço ele... devolve depois... da escola... certeza... devolver... - diz durante o mais do trecho.

Seu amigo, sem reação perante episódio único a si, toma postura de conformidade que aceita mas pesa em crer:

— Ah, beleza... Bom, talvez, como dizia... han... amanhã poderíamos voltar lá...

— Vou em casa vestir uma camisa, tchau... - responde ao perceber proximidade do destino.

— É, também vou para casa. Tchau.

No outro dia, os dois amigos voltaram à banal juvenilidade de rua. Nunca mais aquela camisa foi lembrada. Por nenhum dos dois.

Fim.